quarta-feira, 23 de julho de 2014

Hipólito Rodrigues

HIPÓLITO RODRIGUES
Cativo por Opção

Ramão Rodrigues Aguilar (*)

Hipólito Rodrigues, nativo do interior de São Borja, da localidade de São Marcos, seus aspectos físico identificava sua origem aborígene. Iniciou ganhando a vida, ainda jovem, como remador e “lanchero”, habilidade que aprendeu com seu pai Martins, proprietário da Lancha, que fazia a travessia de passageiros para o porto Argentino, enfrente e descia ou subia o Rio Uruguai, transportando passageiros ou mercadorias, a partir da longínqua década de 30, do século passado.
Hipólito, também, foi balseiro, naqueles tempos se aprendia fazer de tudo um pouco, lenhar, carnear, charquear, tratar da criação, lavrar a terra, plantar, pescar nem se fala, e, quem sabia conduzir uma embarcação aprendia com mais facilidade trabalhar de balseiro, pois na sua época desciam muitas balsas de madeira pelo Rio Uruguai, tanto em toras como já beneficiadas em pranchões. Era um trabalho temporário, somente em épocas de cheias que desciam as Balsas. “ôba! vem à enchente/Uruguai transformou/vai dar serviço pra gente”, como diz na composição musical “Balseiro do Rio Uruguai” de Barbosa Lessa.
Por um bom tempo, enquanto durou a permanência do Seu Geraldo em São Marcos, Hipólito, como remador, tinha uma tarefa diária, de pela manhã, varar o rio e do lado Argentino buscar o pão quentinho, d’água ou a “calleta” para o Seu Geraldo tomar café, Geraldo era Guarda Aduaneiro em São Marcos, onde se originou a relação de amizade com o Hipólito, a partir da década de 20 e perdurou pela vida inteira e quando Seu Geraldo deixou o Porto de São Marco e vem para cidade ele veio junto e agregou-se de braço direito dele. 
Meu pai filho de criação de um fazendeiro da localidade de São Marcos de origem Uruguaia, este que trouxe a minha avó paterna da cidade de Saltos/Uruguai para Santo Tomé/RA, e, com a ida do seu Geraldo para aquele Passo, foi quando o pai conheceu e casou-se com minha mãe Setembrina, filha de Geraldo e Madalena Fernandes Rodrigues. Meu pai, depois de ter vivido e aprendido toda a lida da estância, também, foi remador no Porto de São Marcos sempre recordava das proezas do Hipólito.
Seu Geraldo já estava morando na Granja São Vicente, quando o Hipólito passou a trabalhar com seu filho João Pedro, a partir do final década de 50, nas lavouras de trigo, ele era o cozinheiro da granja, (cozinhava muito bem). Gostava de uma “birita”, não dispensava seu rádio de pilha, seu pertence mais valioso era seu cavalo encilhado e vivia rodeado de cachorros.
Certa feita a passeio, quando guri, na granja onde o Hipólito trabalhava, ele me esperou com uma taxada de “cueca virada”, frita na banha, coberta de açúcar. Comi tanto que me deu um ameaço de congestão. Nesta época não tinha geladeira nas granjas, o Hipólito acondicionava os fervidos (carne com osso) em latas de vinte litros, mergulhados na banha, de lá saia para panela, para temperar o feijão, fazer um ensopado de mandioca ou uma fritada para comer com arroz branco e quibebe...
A única ligação familiar foi esta, que ele escolheu para ser sua perene referência, elo de união de uma corrente de alma com a família Rodrigues.  Ele se considerava e era considerado da família.  Hipólito fez do ideário de sua vida sua dedicação exclusiva a família do Seu Geraldo, serviçal, cativo por opção, nunca conseguiu romper seus grilhões afetivos que o mantinha ligado à família Rodrigues, nem quando alçava voo e abria as asas ao mundo, logo retornava a família que escolheu para fazer parte, nem que fosse para relatar suas aventuras e desventuras, ocorridas durante sua ausência.
Em função do cargo que seu Geraldo exercia o Hipólito tinha seu transito livre, quando navegava pelo Rio afora, atracava sua embarcação em qualquer lugar, desta fronteira amiga, tanto deste lado como do outro, era seu comarcado, seu mundo, seu rio, sua liberdade... Com braços fortes na contração dos músculos, os remos impulsionavam a embarcação, Rio acima ou Rio abaixo, ouvindo o murmúrio das águas. Quando em terra firme escolhia a casa que desejava ficar da família Rodrigues, era sempre bem recebido, chegava e saia quando queria, mas não gostava de aquentar banco.
Já homem feito enamorou-se da Senhorita Iolanda, filha do “Tio Calandro”, cidadão são-borjense muito estimado, casaram-se perante as leis dos homens e de Deus, tiveram um filho e depois tudo acabou. O Hipólito voltou àquela vida que levara antes do casamento, talvez na busca de um passado distante, que havia perdido nos remansos do seu Rio e nas Ruas da velha São Borja, porém, agora, com maior intensidade.
Nesta altura a bebida tinha lhe ocupado todo o espaço, restava apenas o instinto de andar, andar... Perambulando pelas ruas sem saber para onde iria, sem resolver o que fazer com a sua solidão e sofrimento tornou-se um andarilho. E o tempo foi passando... Dias, meses, anos se passaram e o Hipólito envelheceu nesse sofrimento, sua vida havia chegado ao nível da loucura. Não tinha mais seu cavalo encilhado, sua chalana, apenas suas pernas que o conduziam a esmo.
 Muitas vezes recolhido pela Brigada Militar, retornava as ruas da cidade, até que certa noite, uma dessas de inverno rigoroso, geada grande, na busca de um refúgio se recolheu num rancho abandonado, acendeu um fogo de chão para se aquecer, sem se alimentar era movido apenas pelo álcool, adormeceu debilitado. Enquanto dormia o rancho que o abrigava incendiou e sua vida partiu entre as chamas, pobre criatura pura de coração, que nunca fez mal a ninguém.
Como diz numa passagem Bíblica: “És pó em pó te tornarás”. O Hipólito sendo pó, como todo o mortal, em cinza se tornou. O fogo purificou sua alma errante e ela passou habitar entre os barqueiros, “chalaneros” e pescadores do Rio Uruguai para protegê-los de todos os perigos.      

(*) Pesquisador Cultural.

Inverno de 2010.

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